Abri a minha janela e vi meu rosto entre os restos de um fim do um mundo já anunciado. Entre os detritos, entre os resquícios de vida, eu era a profetiza, era eu quem jogava as palavras e previa o que estava por vir. Eu anunciei tudo, abri todos os cadeados, concebi a liberdade a todos, mas eu fiquei presa. Eu me deixei trancar entre nuvens, não consegui me emancipar e estou lá até hoje. Eu tinha tanto medo de ser vista, de ser notada, reconhecida e apontada, que resolvi me fechar como um caramujo e guardei meu sorriso e meu gosto pela vida dentro do meu útero.
Deus sabe que eu não queria cometer esse erro outra vez, mas a verdade é que esse erro sempre fez parte de mim, antes mesmo de eu ter a ideia de que isso poderia me arrastar como areia, em uma tempestade no deserto. Eu fui sem freio, eu fui sugada, fui levada e eu fiquei parada no meio de um beco que tinha vários olhos castanhos e eles me condenavam, por eu não ter sido mais forte.
Eu poderia ter culpado o etílico, eu poderia ter culpado os maus espíritos, eu poderia ter culpado a noite, os corpos, a música, a garota, mas eu fui a culpada, pois não dei as costas ao meu vício. Eu fui atrás dela, lhe dei as mãos, ela veio grudada em meus dedos e me fez voltar para aquele paraíso artificial de sorrisos e metáforas, de dimensões paralelas, de chãos abertos e felicidade pseudo-constante. Ela me enganou mais uma vez. Ela me seduziu, veio falando em meu ouvido e dessa vez eu cedi.
Tudo em meu mundo se mostrava agradável, tudo tinha sua beleza, mesmo não me fazendo gargalhar a todo o instante. A dopamina era a dopamina. Era pouca, mas era a minha dopamina. Ela veio me jogar mais e mais dopamina. E tinha adrenalina, adrenalina. E eu estava misturada àquilo tudo. Eu já não sabia mais quem era, mas era quem eu sempre deveria ser. Eis meu maior temor: eu só me sou de verdade quando estou sob a influência dela. Ela me põe pra fora, ela me joga para o mundo. Ela me tira o medo, me tira as angústias, ela esconde meus pesadelos, ela faz um casulo em seu corpo e ali eu me abrigo quando há uma tempestade incurável do lado de fora do meu mundo.
Eu sou filha da Terra e do Céu, como naquela canção, mas não continuo limpa. Veja que me sujei, que me deixei imundar pela ilusão, pela divagação, pela exclamação inexata da vontade e da saudade. Eu ainda não consigo conceber a ideia de amar tanto um ser que nem sequer respira e simplesmente me faz respirar aceleradamente, sem freios. Eu a coloquei dentro de mim e nem esperei. Repeti várias e várias vezes, até que eu pudesse voar e voar. E voei, deslizei, acho que tive um orgasmo cerebral, me alinhei, amei a todos, eu dancei com todos. Eu dividi meu corpo em milhões de pedaços e inalei seus cacos, que de tão quebrados, viraram pó. Eu me inalei. Eu me transformei na grama mais infame, mais torpe, mais imunda do mundo. Eu me tornei a miséria, a violência, o medo e o vício. Eu me transformei no grande amor da minha vida. Pois sim, devo admitir que a amo, que a desejo, que preciso dela, que preciso sentir seu gosto, mesmo sabendo que é tudo mentira. Que é tudo quimicamente fatal.
Deve haver uma explicação, uma sentença, uma oração que me diga, um mero sintagma nominal pelo menos, que me responda, como posso ser de alguém como ela e como ela pode ser minha. É como se não houvesse a separação. É a relação de amor e ódio que foi estabelecida. É o Céu e o inferno de uma só vez. Ela é o bem o mal. Ela me deixa de quatro, dormente, indigente, reticente, ausente, incoerente e talvez mais inteligente, mais sólida, mais pra frente, mais mórbida, mas mais experiente e voraz!
Devo frisar que não tenho o intuito de fazer uma ode aqui, muito menos tentar justificar essa minha dependência, mas sim, quero com essas meras palavras, tentar entender o que me leva a procura-la, a persegui-la, a busca-la, a correr todos os riscos carnais de estar outra vez com ela. Eu queria saber o porquê dessa minha fraqueza, onde fica esse rombo, esse abismo, essa lacuna dentro de mim, que só ela parece conseguir preencher. Eu tanto fiz, tanto pensei, tanto me senti capaz e em uma corriqueira noite de distração, eu acabei sucumbindo ao meu velho “eu”, àquele “eu” demente, fraco, inexpressivo, abusado pela vida, reprimido, magro espiritualmente, aleijado psicologicamente e sem voz nenhuma. Eu era muda e gritava todos os dias por dentro e só o veneno escutava, só a Santa Clara, entendia meus gemidos, meus sussurros, ela decodificava meus ruídos e me contemplava, me amava e me erguia sobre as cabeças do mundo, como se eu fosse a única Deusa, como se eu fosse a verdadeira realeza e dona do mundo. Eu, egocêntrica como sou, me deixava correr o mundo envolta naqueles braços magros, porem fortes. Eu era absolutamente dela e ela se dava à mim em doses homeopáticas, e assim, essa relação de não separação foi sendo gerada. Nosso hiato me causa falta de ar, pesadelos, espasmos, sudoreses, fobias, visões, depressões, idiossincrasias bizarras, vontades de entrar para de baixo da terra, vontade de voltar a dormir no útero da Mãe Natureza e não mais acordar. Mas acho que não devo me entregar, devo permanecer na minha árdua luta de desintoxicação mundana. Talvez, para largar de vez a mão do diabo, eu tenha que viver em um mundo mais puro, mais santo, talvez eu tenha que abrir mão das minhas vontades plurais, mas a minha paz de espírito, a tranquilidade da minha alma não tem preço. Sei que ainda não tentei de tudo, ainda não pulei todos os muros, ainda não usei todos os meus escudos. Por isso, ainda é muito cedo para desistir, ainda não amanheceu para eu me pintar covarde. Eu vou buscar entre todas as árvores, entre todas as águas, entre todos os terrenos, entre todos os lares, entre todas as matas, entre todos os Homens, não tropeçar mais em pernas erradas, mesmo sabendo que o meu desejo pelo alcaloide dos Andes é mais intenso quando protuberante e expansivo. Eu não posso me sentir derrotada em uma batalha que está longe minguar.
Tenho todos os dias fé, memórias, talheres, amigos, dedos, amores, confusões, dores, cigarros, whisky e vodcas, glórias, família, músicas pelos quatro cantos do meu mundo. Eu tenho todos os elementos que preciso para existir e prontamente viver. Não posso me vitimar, não o faço mais. Eu evoluí independentemente de qualquer rasgo que tenha sido aberto em meu peito por esses dias.
Eu permaneço apaixonada por mim, pelas minhas ideias, pelos meus arranjos, pela minha maneira de enxergar o mundo, apenas por não mais haver ninguém que chegue perto do que eu sou. Sou única, assim como todos são, mesmo uns querendo imitar os outros, mas essa é uma questão que não pede minhas palavras agora.
Voltando a profana rainha venenosa e saliente, que devora meus olhos e minha mente, quero lembrar que o meu fascínio e a minha maior mágoa com ela, é na verdade o fato de ela conseguir anular quase que absolutamente a minha essência, o fato dela me deixar dormente e me fazer não me importar tanto com as dores do mundo. Como se nada mais fizesse diferença. Essa é a sua maior questão. Ela tem dominado o mundo, pois as pessoas ainda não aprenderam a sofrer com dignidade e recorrem a ela para poder, sentir menos dor, ou simplesmente não sentir nada. Eu digo, pois também já fui assim. O pior é querer e procura-la, quando não se tem dores e nem vazios.
Eu e ela teremos uma longa conversa e espero que uma hora dessas seja definitiva, pois não cabemos juntas no mesmo espaço por muito tempo: ou eu a mato ou ela me mata.
Que fique bem claro: “Alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém.”